Pesquisas para estimular produção de anticorpos capazes de neutralizar o vírus da Aids têm resultados animadores
A prodigiosa capacidade do HIV em mudar a configuração das
proteínas em sua superfície para escapar da ação do sistema imunológico é
um dos maiores obstáculos na criação de uma vacina eficaz contra o
vírus, causador da Aids. Mas se tem algo que o HIV não pode mudar é o
formato da “ponta” da proteína que usa para se ligar e invadir o tipo de
célula específica de nosso corpo onde se reproduz, como uma “chave” que
se encaixa numa fechadura.
Diante
disso, nos últimos anos diversos grupos de pesquisadores têm buscado
uma forma de estimular o sistema imunológico a produzir anticorpos
capazes de identificar e neutralizar esta “chave” mesmo que o vírus mude
completamente a estrutura de todo resto da proteína que a suporta, no
que chamam de “anticorpos de ampla neutralização”. Isto é algo que uma
pequena parcela, cerca de 20%, das pessoas soropositivas só faz após
muito tempo depois de infectadas, quando já é tarde demais para que
possam conter a doença, mas agora alguns destes grupos de pesquisadores
sediados nos EUA relatam avanços importantes na estimulação e aceleração
deste processo em um trio de artigos publicado nesta quinta-feira nas
prestigiosas revistas científicas “Science” e “Cell”.
— À medida que o HIV passa por mutações no paciente, o sistema imunológico se adapta continuamente — explica Pia Dosenovic, primeira autora do artigo publicado na “Cell”. — Em alguns pacientes, este processo leva à produção de anticorpos de ampla neutralização, que são anticorpos incomuns capazes de se ligarem e neutralizarem uma grande gama de variantes do HIV que circulam globalmente. E é a produção destes anticorpos que estamos tentando estimular com uma vacina.
UMA ‘CHAVE’ DIFÍCIL DE COPIAR
— À medida que o HIV passa por mutações no paciente, o sistema imunológico se adapta continuamente — explica Pia Dosenovic, primeira autora do artigo publicado na “Cell”. — Em alguns pacientes, este processo leva à produção de anticorpos de ampla neutralização, que são anticorpos incomuns capazes de se ligarem e neutralizarem uma grande gama de variantes do HIV que circulam globalmente. E é a produção destes anticorpos que estamos tentando estimular com uma vacina.
A
primeira dificuldade enfrentada pelos cientistas na busca por este tipo
de vacina contra o HIV foi encontrar uma forma de reproduzir a “chave”
usada pelo vírus para invadir nossas células. Em condições normais de
laboratório, este código se desfaz quando eles tentam isolá-lo da cadeia
de proteínas virais, o que impede sua transposição direta na produção
de uma vacina, como acontece com muitos imunizantes que usam partes dos
micro-organismos que são desenhadas para combater.
Assim, os pesquisadores sintetizaram diversas moléculas, chamadas
“imunogênicos”, capazes de induzir as células B, as “fábricas” de
anticorpos de nosso sistema imunológico, a responderem a esta “chave”.
Em um dos dois artigos publicados na “Science”, eles relatam o sucesso
de um deste imunogênicos, batizado eOD-GT8 60mer, na ativação inicial
desta resposta imunológica pelas células B em experimento com
camundongos geneticamente modificados para terem um sistema imunológico
similar ao humano.
— A vacina parece funcionar bem em incitar esta resposta primária de
anticorpos em nosso modelo com camundongos — diz David Nemazee,
professor do Instituto de Pesquisas Scripps, na Califórnia, e autor
sênior deste artigo na “Science”.
Mas conseguir provocar esta primeira reação do sistema imunológico
não é o bastante para que se tenha uma vacina eficaz contra o HIV. É
preciso ainda ensinar “passo a passo” as células B a produzirem logo e
em grande quantidade os anticorpos de ampla neutralização contra o
vírus. Os cientistas então criaram outra série de imunogênicos — que
chamaram de “nativos” por se assemelharem mais com a “chave” natural do
vírus — para guiar este processo. Injetadas em coelhos e macacos, duas
destas moléculas se mostraram capazes de estimular e acelerar as células
B na transição entre produzirem anticorpos específicos contra apenas um
tipo do vírus e a fabricação dos de ampla neutralização, informam os
pesquisadores no segundo artigo publicado na “Science”.
IMUNIZAÇÃO EM DOSES MÚLTIPLAS
Por fim, o
estudo publicado na revista “Cell” une os achados dos anteriores,
indicando que uma vacina bem-sucedida contra o HIV provavelmente terá
que ser administrada em múltiplas doses, cada uma com um imunogênico ou
uma mistura de imunogênicos específicos de forma a primeiro ativar a
resposta inicial das células B ao padrão da “chave” molecular do vírus e
depois progressivamente encaminhá-las rumo à efetiva produção dos
anticorpos de ampla neutralização do micro-organismo. No experimento,
também realizado com camundongos geneticamente modificados para terem um
sistema imunológico similar ao humano, os cientistas novamente
demonstraram que enquanto a molécula sintética foi eficiente em incitar
as células B a reconhecerem esta parte do vírus, os imunogênicos
“nativos” foram mais eficazes depois, numa espécie de “sintonia fina”
dos anticorpos que elas deveriam fabricar para combater as diversas
variações do HIV.
— Embora nossos resultados sugiram que imunizações sequenciais possam
tornar possível a vacinação contra o HIV, apenas começamos a entender
como esta sequência funcionaria — ressalta Pia Dosenovic. — Conhecemos o
início e o fim, mais ainda não sabemos o que deve acontecer no meio.
Apesar de todos os estudos terem sido realizados com animais, os
cientistas estão otimistas quanto à possibilidade de futuramente
replicar os resultados em humanos, embora ressaltem que ainda vai levar
algum tempo até que as pesquisas atinjam este estágio e uma vacina
contra o HIV esteja de fato disponível.
— Os resultados são mesmo espetaculares — conclui Dennis Burton,
chefe do Departamento de Ciências Imunológicas e Microbiais do Instituto
de Pesquisas Scripps e coautor dos dois artigos do trio publicados
nesta quinta-feira na “Science”. — Estamos de fato começando a ver a
racionalidade de como o desenho desta vacina pode funcionar.
Fonte: O Globo
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